"Quando os jovens de uma nação são conservadores, o sino de seu funeral já tocou" Henry Ward Beecher

"Quando os jovens de uma nação são conservadores, o sino de seu funeral já tocou"
Henry Ward Beecher

domingo, 24 de agosto de 2008

O trabalho continua vivo

Os avanços tecnológicos, científicos e informacionais têm operado grandes mudanças no processo de produção e reprodução da vida, mormente, no mundo do trabalho. Os debates sobre o papel e o lugar da categoria trabalho têm levado um conjunto variado de autores a concluir pelo fim da sua centralidade na estruturação social e na geração da riqueza. Nesta entrevista, o professor Sérgio Lessa, da Universidade Federal de Alagoas, conferencista no Ciclo de Debates “Mundo do trabalho e ser social”, realizado na Unijuí (RS), recorta essa temática pelo sentido inverso. Um dos mais destacados estudiosos de Lukács no Brasil, Lessa critica o que aponta como teorias conservadoras dos autores que orquestram o dobre de sinos do fim do trabalho. Retomando a tese marxiana da inteligibilidade do mundo pela unidade dialética das valências trabalho e ser social, diante do avanço prático-teórico do trabalho morto, Lessa reafirma o trabalho vivo.

O seu livro Mundo dos homens: trabalho e ser social (Ed. Boitempo), dedicado ao estudo do pensamento do último Lukács[1], inicia com um capítulo sobre a centralidade do trabalho hoje, tema ao qual o senhor vem se dedicando há vários anos. O senhor poderia resumir alguns dos seus argumentos a favor dessa tese?
Do ponto de vista mais imediato, da vida cotidiana da maior parte das pessoas, o argumento mais visível é o desemprego. O desemprego é a afirmação da centralidade do trabalho pela sua face mais negativa possível, pela sua carência. O peso objetivo, social e também subjetivo do desemprego é uma evidência bastante forte de que o trabalho continua sendo a categoria central do mundo dos homens.
Os argumentos teóricos que sustentam e demonstram a validade desta percepção mais imediata estão aglutinados ao redor da tese marxiana de que são os seres humanos os únicos responsáveis pela sua história. Até Marx, a história era concebida como resultado de uma essência dada de uma vez para todo o sempre. Seria esta essência e não os seres humanos a responsável pelo nosso destino e, ao mesmo tempo, esta essência sempre comparece como o limite máximo do desenvolvimento histórico possível. Foi assim com Aristóteles, com Tomás de Aquino e com a natureza humana tal como concebida pelos modernos.
A descoberta do trabalho como a categoria fundante do mundo dos homens (e, correlativamente, da economia como momento predominante na reprodução social), por Marx, possibilitou a compreensão de que o demiurgo da história somos nós mesmos, a humanidade. E foi a partir deste contexto que o trabalho foi afirmado como ontologicamente central ao ser social.
Vários autores, mesmo alguns que vieram do marxismo, vêm elaborando novas teorias em torno da tese da diminuição numérica da classe operária fabril clássica em favor do crescimento do terceiro setor da economia, o de serviços, o que configuraria o que eles chamam de “sociedade pós-industrial”. Qual a sua opinião sobre essas leituras?
Na enorme maioria das vezes, independente da intenção do autor, são teorias que se prestam ao triste papel de elogiar a crise em que vivemos como as dores inevitáveis de transição para um novo período de prosperidade e felicidade. Desde Daniel Bell – que foi um marxista na juventude, mas mudou de lado depois –, a formulação mais famosa, até as muitas variações desta tese, como Adam Schaff com A sociedade informática, Lojkine, com A revolução informacional, Negri e Hardt, com o comunismo do trabalho imaterial – todas estas teses, cada uma a seu modo, procuram convencer o leitor de que estaríamos próximos a uma nova etapa histórica, que deixaria as mazelas do capitalismo no passado.
Por isso, tais teorias são sempre conservadoras e sempre trazem, a tiracolo da sua tese principal, a afirmação da superação das categorias marxianas para pensarmos o mundo em que vivemos. Não creio que tais teorias tenham muito a nos dizer acerca do presente. Suas teses têm sido sistematicamente negadas pelo desenvolvimento histórico e não trazem contribuições que os revolucionários possam aproveitar.
No seu mais recente livro, Para além de Marx? (Ed. Xamã), título contraposto ao de um ensaio de Antonio Negri, Marx além de Marx, o senhor polemiza contra a teoria do trabalho imaterial desse filósofo italiano, hoje bastante em voga. Seria possível resumir o essencial de sua crítica a esse pensador?
A tese central do livro é de que os autores que se reúnem ao redor da tese do trabalho imaterial (Negri é o mais conhecido deles) elaboraram uma fantástica fantasia (se me permitem) acerca do mundo em que vivemos, e que ela não passa de mais uma justificativa, sempre conservadora, evidente, da crise estrutural do capital.
Estou convencido de que, na maior parte das vezes, basta expor as teses desses autores para que caiam em descrédito imediato: a categoria central da história, desde o século XVI, seria “o tempo pelo amor por se constituir”. Seria esta a categoria central no desenvolvimento histórico do que estamos acostumados a conhecer como modo de produção capitalista. O desenvolvimento do “amor pelo tempo” teria levado os operários a abandonarem as fábricas e a estabelecerem, nos interstícios do capital, o comunismo. Viveríamos, assim, em um misto de comunismo e capitalismo! Evidentemente, para poder afirmar esta tese, devem abandonar por completo o marxismo e elaborar toda uma teoria da história que, segundo bem disse Gorz, não passa de um “delírio”.
Especialmente no terreno da Filosofia, sobretudo após Kant, existe uma grande resistência à lida positiva com o termo ontologia, por ensejar quase sempre a algo metafísico. Por qual razão o senhor pensa que Lukács, um filósofo materialista, escolheu, na contramão disso, justamente esse termo para intitular a sua obra derradeira, Para uma ontologia do ser social?
Porque ele descobriu, a partir de Hartmann, que a ontologia não é necessariamente metafísica e, portanto, conservadora. Há um belíssimo artigo de Guido Oldrini, “Em busca das raízes da ontologia (marxista) de Lukács”[2], do qual empresto a tese: até Marx todas as ontologias tinham que ser conservadoras porque partiam de uma concepção da essência humana enquanto eterna, historicamente imutável. Ao Marx descobrir que a essência humana é o conjunto das relações sociais e que, portanto, tal essência é parte integrante, movida e movente, da história, abriu caminho para uma crítica ontológica do mundo capitalista. Lukács, então, ao recuperar o pensamento marxiano, propõe-se a demonstrar como e em que medida ele é uma ontologia do ser social, isto é, uma investigação acerca do que o ser social é e de por que ele não é de outro modo.
Assim como Marx inaugura uma nova concepção de mundo ao colocar o homem como o único e exclusivo demiurgo da história, também, segundo Lukács, teria fundado uma nova ontologia. Nesta, a grande descoberta de Marx teria sido a distinção entre a essência e o fenômeno, não pelo quantum de ser de cada um, mas sim por uma articulação qualitativamente distinta com a continuidade. A essência seria a concentração dos elementos de continuidade e, o fenomênico, seria a dos elementos de singularidade. Deste modo, a essência passa a ser parte movida e movente dos processos e, obviamente, a essência humana é tão histórica quanto qualquer outra dimensão da existência humana.

Nenhum comentário: