"Quando os jovens de uma nação são conservadores, o sino de seu funeral já tocou" Henry Ward Beecher

"Quando os jovens de uma nação são conservadores, o sino de seu funeral já tocou"
Henry Ward Beecher

sábado, 26 de setembro de 2009

Os aliados do imperialismo norte-americano se dividem

Na última semana, o comando militar italiano questionou a liderança espanhola nas regiões controladas pela OTAN no Afeganistão

A disputa entre os dois governos foi evidenciada em um artigo apócrifo publicado no jornal Il Foglio, do grupo de Berlusconi, segundo retrata o diário espanhol El País: “em uma crítica tão furiosa quanto bem documentada – até o ponto de que os meios diplomáticos espanhóis não duvidam que não passe da opinião do Ministério da Defesa italiano ventilada pelo jornal – o artigo assegurava que “o comando italiano [no Afeganistão] teve que combater em diversas batalhas neste verão sem poder contar com os 780 militares espanhóis, que aumentaram para 1.250 em função das eleições, devido às rígidas limitações impostas pelo governo Zapatero, que impedem que os espanhóis participem de atividades ofensivas, inclusive ao lado dos afegãos, e permitem o uso das armas apenas em autodefesa.
“A escassa combatividade dos espanhóis favoreceu a ofensiva talibã”.
O artigo publicado em resposta no El País continuou expondo as acusações feitas pela imprensa italiana.
A Espanha, que detém o Comando Regional Oeste no Afeganistão, e o general nº 2 na OTAN, está em disputa com a Itália pelo posto. Diante do maior número de tropas e aeronaves de combate empregadas pelos italianos na operação, o governo espanhol concedeu, após ter sido pressionado, o comando das operações a generais italianos.
O ataque recente do Talibã, que matou seis soldados italianos, agravou a crise. Soldados espanhóis também foram mortos recentemente levando os aliados do imperialismo norte-americano a reconsiderar sua participação. A sua participação no Afeganistão coloca em jogo a própria estabilidade dos dois países.
A crise aberta em torno à questão de quem deve comandar os contingentes da OTAN reflete a crise do plano do imperialismo norte-americano para controlar o Afeganistão.

domingo, 20 de setembro de 2009

Desemprego continua crescendo


Com aumento de vagas de emprego em agosto, o governo Lula oculta que este ano foram demitidos mais de um milhão de trabalhadores devido à crise econômica




O governo Lula anunciou na última quinta-feira, dia 17, que houve um recorde na criação de empregos no mês de agosto. Foram 242.126 vagas que estão sendo apresentadas como um avanço inquestionável na economia brasileira, um claro sinal de recuperação da crise.
Lula declarou, "Vocês devem imaginar que estou muito feliz por nós termos batido recorde no mês de agosto. Isso significa que nós podemos continuar crescendo em setembro. Isso é muito bom e tudo indica que a gente pode ultrapassar 1 milhão de empregos criados num único ano, justamente em que a gente estava em uma crise profunda. Acho isso extraordinário” (Último Segundo, 17/9/2009).
O cinismo típico de Lula serve para esconder a realidade por trás das estatísticas. Enquanto são anunciados 242 mil vagas criadas em agosto, fica oculto que os postos de emprego foram criados sobre a base de baixa produção e estoques quase escassos. A indústria criou neste mês 66,6 mil postos, mas tem no acumulado de janeiro a agosto um saldo negativo de mais de 60 mil vagas.
Na comparação com os anos de 2007 e 2008, este ano vai deixa de criar 600 mil vagas. Desde o início de 2009 foram perdidos mais de um milhão de empregos. Segundo um analista econômico, ''O problema hoje é que há muita gente desempregada e dificilmente será possível vencer o estoque de desempregados neste ano'' (O Estado de S. Paulo, 17/9/2009). Não somente este ano, mas nos próximos anos. O desemprego é um dos piores efeitos causados pela crise. A maioria dos empregos perdidos não são recuperados, são postos de trabalho extintos.
A tentativa do governo em apresentar estes dados como uma super recuperação a crise não revela os milhões de desempregados e os que mesmo empregados estão recebendo arrocho salarial, aumento no custo de vida etc.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Burguesia amplia repressão contra população

Como parte da campanha de repressão e perseguição contra a população os governos ampliaram a vigilância em torno da lei do silêncio, que em pouco mais de oito meses já multou 64% a mais do que todo o ano de 2008

As medidas repressivas adotadas pelos governo burgueses na tentativa de controlar a população estão se espalhando e se intensificando. Medidas como o toque de recolher, a lei seca, a lei antifumo, cidade limpa etc., estão sendo aprovadas aos montes e tem como intuito manter os trabalhadores afundados em proibições e restrições.
Depois de ter adotado a lei do silêncio, mais conhecida como a lei do Psiu, uma medida extremamente repressiva que procura impedir a população de falar, o governo de São Paulo também resolveu intensificar a vigilância em torno da medida. Segundo os dados da Secretaria de Coordenação de Subprefeituras em pouco mais de sete meses, entre janeiro e julho deste ano, as multas para as pessoas que infligiram a lei, ou seja, para as pessoas que falaram, bateu o recorde com o aumento de 64% com relação a todo o ano de 2008.
O Programa Municipal de Silêncio Urbano (Psiu) foi implementado em 2005 para proibir todo e qualquer ruído após a meia-noite, uma medida inclusive inconstitucional, já que as pessoas não podem ser proibidas de falar seja em que horário ou lugar for. Os principais alvos da lei são os bares e restaurantes que permanecem abertos após a meia-noite. Esses estabelecimentos acumularam mais de 417 multas apenas nos primeiros meses do ano. Na pratica a medida tenta impedir o funcionamento desses estabelecimentos após o horário estipulado pela lei, já que é impossível manter bares e restaurantes abertos sem que as pessoas possam fazer barulho, ou seja, sem que os fregueses possam conversar, tão pouco ouvir música.
Assim como o toque de recolher, a lei do silêncio, da mordaça, esta é uma tentativa de impedir as pessoas de sair de suas casas, uma primeiro passo para determinar a prisão domiciliar da população. “O Psiu fiscaliza o ruído extra de outros estabelecimentos que funcionam a qualquer hora do dia. Nessa categoria, foram 154 multados por barulho excessivo. A média mensal de 2009 está em 22 barulhentos autuados e também indica tendência de aumento. Em 2008, foram 18 penalizados por mês nesta categoria”, informou a Secretaria (Estadão, 14/9/2009).
A medida, apesar de ser extremamente repressiva, é apresentada para a população como sendo algo benéfico inclusive para a saúde, uma vez que teoricamente iria acabar com o barulho. Esses argumentos são típicos dos governos burgueses que sempre utilizam essas artimanhas para persegue a população. A lei do silêncio não tem nada a ver com tentar “cuidar” da saúde da população, mas em impor uma verdadeira ditadura, mantendo a população afundadas em proibições. Ou seja, as pessoas não podem fazer mais nada. Não podem sair de casa, conversar ou participar de cultos religiosos, protestar, dirigir (já que o trânsito também será alvo da lei), freqüentar bares, beber, fumar, dançar etc. As milhares de proibições impostas pela burguesia criam um ambiente onde tudo é proibido. A população não deve aceitar essas medidas repressivas, pelo contrário, está na ordem do dia organizar uma ampla campanha contra todas as leis que estão sendo adotadas no intuito de perseguir os trabalhadores.

sábado, 5 de setembro de 2009

Governo Lula quer entregar o petróleo do pré-sal às “big oil”




No mesmo dia em que a CPI da Petrobrás foi instalada, o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão (PMDB), deu uma declaração sobre o novo modelo de exploração do petróleo encontrado na chamada camada pré-sal, que pode transformar o Brasil num dos maiores produtores mundiais. O marco regulatório apresentado pelo ministro estabelece o sistema de partilha da produção no pré-sal e em outras grandes reservas de petróleo. Isto é, o sistema de leilão das reservas não será mais utilizado nestas áreas, e a empresa vencedora da licitação será aquela que oferecer o maior retorno em petróleo ao país.Para administrar essas reservas e fazer a sociedade com as empresas selecionadas, o governo vai criar uma nova estatal de petróleo e um fundo social gerido pelo Ministério da Fazenda. O ministro afirmou, ainda, que a nova estatal utilizará o modelo adotado na Noruega, com poucos funcionários e sem nenhum parque produtivo. A ideia é, portanto, montar apenas um escritório de gerenciamento, e não uma empresa de produção de petróleo. A produção será feita pelas multinacionais do setor – conhecidas como “big oil” – que vencerem a licitação ou pela Petrobras, mesmo sendo ela que durante décadas tenha feito as pesquisas e as prospecções na área, com recursos próprios, para descobrir os campos localizados a 7 mil metros abaixo do nível do mar.O pré-salO petróleo pré-sal está localizado no mar, de Santos até Santa Catarina, sob lâminas de água de 3 mil metros e abaixo de uma espessa camada de sal. Acumulações idênticas ao do pré-sal do litoral do Brasil podem ser encontradas do outro lado do Atlântico, no litoral da África. Os pré-sal – petróleo não-convencional – são as últimas fronteiras petrolíferas descobertas no planeta Terra.Hoje, a produção mundial de petróleo está entre 82 e 85 milhões de barris de petróleo por dia, em campos que já começam a dar sinais de esgotamento. Em 2025, esta produção cairá para 49 milhões de barris. Porém, com um crescimento econômico mundial médio de 2% anuais, seriam necessários 120 milhões de barris em 2025. Com a queda irreversível das atuais reservas, a descoberta do pré-sal aumenta a cobiça das multinacionais e do imperialismo norte-americano, que vê nestas reservas uma fonte de energia barata e que pode manter o atual nível de consumo do petróleo e, portanto, seus lucros. Afinal, o pré-sal do Brasil tem acumulações entre 90 e 150 bilhões de barris, o que pode colocá-lo como o segundo maior produtor mundial, depois da Arábia Saudita.O modelo da NoruegaO modelo anunciado pelo ministro Lobão vai levar-nos ao mesmo destino da Noruega, onde o petróleo do Mar do Norte, utilizado pelos Estados Unidos e Inglaterra, está sendo esgotado rapidamente. No Mar do Norte, as reservas gigantes foram destruídas em apenas 30 anos e agora só restam 17 bilhões de barris de petróleo para serem extraídos.Para convencer os brasileiros das vantagens do novo modelo, o governo e dirigentes sindicais como o coordenador geral da Federação Única dos Petroleiros (FUP), João Antônio de Moraes, têm afirmado que a Noruega tem hoje um dos melhores níveis de vida do mundo, com previdência social para todos e sem desconto nos salários. Mas se esquecem de dizer que a população da Noruega é de apenas 4,7 milhões de habitantes, contra 190 milhões no Brasil. Isto é, a mesma renda obtida do petróleo seria distribuída para uma população 40 vezes maior. Sem contar que os governos brasileiros têm priorizado sempre o pagamento da dívida pública e a manutenção de reservas para propiciar a remessa dos lucros das multinacionais ao exterior, ao invés de investir nas necessidades da população.O governo Lula entrega nossa soberaniaA mudança do sistema de leilões de nossas reservas para partilha pelo governo Lula, bem como a criação de uma nova estatal do petróleo, servem apenas para aprofundar a submissão do país às multinacionais e ao imperialismo. Se nos leilões as empresas que ofereciam mais dinheiro tornavam-se proprietárias do subsolo, agora serão as que oferecerem mais petróleo. Muda apenas a forma de pagamento, mas o Brasil continuará entregando suas riquezas.A nova estatal ficará com os novos megacampos e à Petrobras sobrará apenas a exploração dos atuais campos, com apenas 9,3 bilhões de barris restantes. Esta operação servirá para a desvalorização de uma estatal produtiva e lucrativa, facilitando sua privatização.É por isso que a Frente Nacional dos Petroleiros, na primeira declaração após sua fundação, afirmou que “esta proposta vai contra todas as reivindicações dos movimentos sociais brasileiros que lutam para que todo o petróleo seja nosso, de todo povo brasileiro, e que a Petrobrás seja reestatizada tornando-se totalmente estatal (100%), que todos os leilões sejam anulados e as áreas já hoje entregues às multinacionais petroleiras sejam devolvidas ao Estado”.Apenas a manutenção e intensificação da campanha “Todo petróleo tem que ser nosso” e um posicionamento claro por parte das entidades participantes contra as propostas do governo Lula pode fazer com que os trabalhadores e o povo brasileiro coloquem-se decididamente contra mais esse ataque à nossa soberania nacional.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Falácias acadêmicas

Paulo Roberto Almeida

o mito da transição do capitalismo ao socialismo

1. O socialismo vai emergir a
partir do capitalismo?

Uma das mais persistentes falácias alimentadas durante a época áurea do marxismo acadêmico, que foi também a do comunismo prático – um período que se estende, grosso modo, dos anos 20 aos 80 do século 20 – era a que pretendia que o capitalismo seria fatalmente sucedido pelo socialismo, e este pelo comunismo (mas aqui, mesmo os mais fiéis cultores da crença remetiam essa passagem a um futuro indefinido). A rigor, ainda nos dias que correm, muitos adeptos dessa concepção evolutiva – aparentemente, desta vez, apenas nos meios acadêmicos –pretendem que essa sucessão se dará fatalmente, mesmo se o processo tenha de adotar uma cronologia mais
delongada do que aquela prevista em trabalhos alegadamente marxistas. Trata-se,
portanto, de uma falácia persistente, justificando, assim, que ela seja examinada nesta
série voltada especificamente para os mitos que alimentam o mundo acadêmico, a
despeito de tantos desmentidos empíricos e de tantas provas em contrário às suas
principais assertivas. Entretanto, como sabemos, o mundo acadêmico costuma girar em
torno de conceitos abstratos, alimentando-se de seus próprios mitos, entre os quais alguns
dos mais relevantes são aqueles que derivam da tradição analítica marxista, uma das mais
presentes e das mais ‘poderosas’ nas áreas das humanidades.1
A bem da verdade, naquele período do marxismo quase triunfante, não eram só os
marxistas acadêmicos, ou os seus praticantes, que mantinham essa crença, assim como
não são apenas os representantes da família que a mantêm ainda hoje. Sem pretender

* Doutor em Ciências Sociais, Mestre em Planejamento Econômico, Diplomata de carreira.

1Este é o décimo primeiro ensaio de uma série especial sobre as falácias acadêmicas; para a coleção
completa de artigos, ver: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/FalaciasSerie.html.

estabelecer aqui uma lista completa dos true believers – pois ela seria enorme, sobretudo
entre os franceses, italianos e ingleses –, pode-se mencionar, na categoria dos céticos,
dois mais preeminentes: o economista austríaco Joseph Schumpeter, com o seu famoso
Socialismo, Capitalismo e Democracia (1942)2, e o economista canadense John Kenneth
Galbraith, sobretudo em seu livro The Affluent Society (1958), cujas teses principais
foram depois reafirmadas em The New Industrial State (1967).3 Os dois, junto com
Thorstein Veblen, um predecessor do início do século 20, não confiavam muito na
capacidade dos mercados livres e do capitalismo desimpedido em corrigir os problemas
mais típicos do sistema, quais sejam: a desigualdade social e a concentração do poder
econômico, pregando, como consequência lógica, o aumento dos serviços públicos e o do
poder estatal sobre as empresas privadas.
Mesmo um liberal clássico como Raymond Aron, em suas aulas de Sociologia Política
na Sorbonne – resumidas, entre outros livros, em Dix-Huit Leçons sur La Société
Industrielle (1963), e na obra que lhe segue, La Lutte des Classes (1964) –, chegou a
acreditar, não exatamente na sucessão, mas na futura confluência dos dois sistemas,
crença, aliás, partilhada com o mesmo Galbraith. Na verdade, Aron se dedicou
justamente a desmentir alguns dos dogmas com que ele se deparava no ambiente
acadêmico do seu tempo, entre eles: o mito da evolução do capitalismo ao socialismo, o
da convergência entre os dois tipos de sociedade industrial e o da equivalência entre os
sistemas industriais com prevalência da propriedade privada e aqueles caracterizados
pela dominação do Estado, independentemente do regime político subjacente. Mas ele
também tendia a acreditar que a complexidade crescente dos sistemas produtivos, com o
desenvolvimento de uma tecnoburocracia ampliada – um conceito típico na obra de
Galbraith – levaria futuramente a uma atenuação das características ideal-típicas de cada
um dos sistemas. Esse não era o caso, obviamente, do marxista americano Paul Sweezy,
que, junto com Paul Baran, acreditava na transição do capitalismo ao socialismo,4
contemporaneamente, aliás, ao francês Charles Bettelheim, cujos livros trataram

2 O economista austríaco Joseph A. Schumpeter (1883-1950) é mais conhecido por sua teoria dos ciclos
econômicos e pela inovação empresarial, mas foi também um crítico do imperialismo e do capitalismo; sua
teoria do desenvolvimento econômico (apresentada em livro publicado em 1911) é bem mais uma análise
das condições do crescimento sustentado, com base na atividade industrial (mudança tecnológica e
destruição criativa). Com base na instabilidade inerente do capitalismo, ele previu, em seu livro de 1942,
que o sistema acabaria se dissolvendo pelas mãos dos intelectuais – como ele, talvez –, mas tendo falhado
como ministro da Economia da Áustria (1919) e como diretor de um banco vienense (1924), não se pode
atribuir muitas virtudes prescritivas a seu diagnóstico pessimista. Para um breve resumo de sua vida e obra,
ver seu verbete no site da New School for Social Research
(http://homepage.newschool.edu/het//profiles/schump.htm), na qual foi professor, durante muitos anos,
Robert Heilbroner, um de seus alunos e autor do famoso Worldly Philosophers (1953; publicado no Brasil
como A História do Pensamento Econômico, várias edições).3

Nesse último livro Galbraith apresentou o conceito de Nova Classe, precipuamente voltado para a categoria dos trabalhadores intelectuais, conceito que seria desenvolvido pouco depois para o sistema socialista pelo iugoslavo Milovan Djilas, mas puramente no sentido dos aparatchiks dos partidos comunistas, que detêm o poder político e econômico sem participar de nenhum esforço produtivo.

4 Paul Sweezy tornou-se marxista na Inglaterra, e de retorno aos EUA publicou The Theory of Capitalist
Development (1942) e, em colaboração com Paul Baran, Monopolist Capitalism (1966). Junto com Leo
Huberman, outro expoente da mesma tendência, ele fundou a Monthly Review, durante décadas o mais
representativo e inteligente veículo do marxismo anglo-saxão.

Especificamente da transição do capitalismo ao socialismo, com alguma flexibilidade
conceitual em relação à doutrina canônica do marxismo oficial.5
Enquanto os representantes da vertente capitalista concebiam uma progressiva
domesticação das forças de mercado pela regulação estatal, num ambiente de reformismo
democrático que separaria cada vez mais a propriedade capitalista de seu controle
efetivo, os expoentes do marxismo acadêmico apostavam na erosão fatal do capitalismo
competitivo, pelo esgotamento das possibilidades de acumulação – segundo a famosa
‘lei’ marxiana da queda tendencial da taxa de lucro e em função das crises de
superprodução, com redução da demanda em virtude da concentração de renda – e pela
formação dessa entidade mítica chamada ‘capitalismo monopolista’, o que levaria à
estagnação do sistema. Na periferia também existiam os estagnacionistas e os declinistas,
um grupo que vai de André Gunder Frank a Samir Amin, ainda hoje ativo e mais
centrado sobre a expansão imperial do capital, terreno no qual também se exerce o
‘mundialista’ Immanuel Wallerstein. Não é preciso dizer que todos os representantes do
segundo grupo ficam bastante animados a cada crise do capitalismo, antevendo ali seu
declínio irresistível e o prenúncio da derrocada fatal.
A origem e a natureza das crenças respectivas dos dois grupos nessa transição diferiam
bastante, tanto em relação ao itinerário futuro do capitalismo – mais ou menos próximo,
segundo uma ou outra categoria de ‘analistas’ – como no que se refere à ‘metodologia’
da transição: esta seria revolucionária e entremeada de ‘crises terminais’ para o primeiro
grupo, mas gradual e evolutiva para o segundo, desembocando, de qualquer maneira, em
formas graduais e evolutivas de um capitalismo regulado ou de um socialismo de
mercado, numa espécie de radicalização da social-democracia. Para os adeptos da
teleologia marxista, a transição estava inscrita na lógica do desenvolvimento do
capitalismo, segundo uma sucessão fatal de modos de produção que partia do escravismo
antigo, passava pela servidão feudal – eventualmente com o despotismo oriental em sua
forma especificamente asiática pelo meio – e chegava ao socialismo, depois dos
estertores demoníacos do sistema burguês de produção. Este, estava inegavelmente
condenado à lata de lixo da História – ou ao museu das antiguidades, segundo Engels –
depois de uma luta heróica da classe operária contra a sua exploração desenfreada e
voltada para o assalto ao céu do poder político. O Estado burguês e o modo de produção
capitalista seriam irremediavelmente substituídos, por meios violentos ou no bojo de
lutas democráticas, pelo modo superior de produção, ele mesmo apenas uma simples
etapa no caminho da futura sociedade comunista.
Já os intelectuais capitalistas, como Schumpeter, Galbraith ou Aron, acreditavam que
haveria uma aproximação gradual dos dois sistemas, tanto pela ‘socialização’ do
capitalismo – transformado em ‘managerial capitalism’,6 no quadro de grandes empresas,
5
5 O livro mais famoso de Charles Bettelheim se chamava, justamente, La transition vers l'économie
socialiste (Paris: Maspero, 1968), mas já em 1945 ele publicava um estudo sobre La planification
soviétique (Paris: Rivière, 1945).

No debate em torno do modelo cubano, no início dos anos 1960, quando
Fidel Castro e Che Guevara pretendiam impulsionar rapidamente um modelo stalinista de industrialização, ele recomendou um modelo mais flexível, baseado na Nova Economia Política de Lênin, combinando elementos estatais e de mercado. Em seus muitos outros trabalhos – como em Problèmes théoriques et pratiques de la planification (Paris: Maspero, 1970) – ele continuava a sustentar o planejamento socialista, embora tenha recomendado medidas de descentralização, contra o “capitalismo de Estado” da experiência soviética, da qual ele foi um dos maiores críticos de esquerda.
6 O conceito foi introduzido em trabalhos analíticos de James Burnham e Alfred Schandler, que
conceituaram a evolução do sistema pelo lado das empresas. Burnham, um ex-trotsquista, operou uma na verdade administradas por um conselho a serviço dos acionistas, mais do que
respondendo a um proprietário individual, segundo o protótipo do patrão burguês –
quanto pelo retorno inevitável do socialismo a princípios de mercado, numa evolução à
la Bernstein. Cabe registrar que a ‘fé’ dos intelectuais ocidentais na permanência do
capitalismo tinha sido bastante abalada pelas crises dos anos 1930 e a consequente
ascensão da regulação estatal. Logo depois da crise de 1929, por exemplo, Adolf Berle e
Gardiner Means publicam a famosa obra The Modern Corporation and Private Property
(New York: Macmillan, 1932), que apresenta uma primeira visão crítica quanto às
chances do capitalismo competitivo nas novas condições de regulação estatal, agenda
reformista que seria implementada pela administração Roosevelt nos anos 1930.
Mesmo um espírito liberal, como o jovem Peter Drucker, atuando como jornalista
econômico em Londres, depois de fugir de sua Áustria nazificada no fim dessa década,
chegou a duvidar, em The End of Economic Man (subtítulo: The Origins of
Totalitarianism, 1939), que as economias de mercado livre pudessem exibir melhor
desempenho do que as ascendentes economias coletivistas, então em vigor na Alemanha,
na Itália e na União Soviética. No imediato pós-Segunda Guerra, quase todas as
economias do Ocidente capitalista adotaram o planejamento indicativo – quando não
Planos Quinquenais, como no caso da França – e recorreram a formas mais ou menos
abrangentes de nacionalização de setores estratégicos e à estatização de serviços públicos
essenciais.
Tudo parecia sugerir, então, que o capitalismo caminharia bovinamente para o matadouro
da sucessão marxiana dos modos de produção e que as profecias marxistas sobre o
esgotamento das possibilidades produtivas do capitalismo seriam confirmadas pela
acumulação de crises recorrentes do sistema. Todas essas crises nada mais seriam do que
um simples prenúncio da crise final e derradeira que levaria de roldão o sistema
condenado por antecipação pelo demiurgo e seus discípulos. Nunca foi tão alta a crença
nos diagnósticos teóricos e nas prescrições práticas do marxismo oficial, assim como
nunca foi tão elevado o prestigio dos acadêmicos marxistas nos estabelecimentos de
ensino superior, virtualmente monopólicos nas humanidades e até em alguns ramos das
ciências sociais aplicadas.
O itinerário efetivo do capitalismo desmentiu, porém, os profetas do apocalipse. Mas a
evolução positiva dos sistemas de mercado não tem apenas a ver com a flexibilidade
adaptativa do modo capitalista ou com uma suposta resistência política das democracias
ocidentais. A rigor, o capitalismo enquanto sistema concreto de produção de
mercadorias, não está nem um pouco preocupado com sua evolução futura. Quem se
debruça sobre essa questão são os acadêmicos e, aqui, eles parecem ter apostado
erradamente contra o sistema. O problema a ser explicado, portanto, tem a ver muito
mais com monumentais erros conceituais da própria doutrina original, como discutiremos
a seguir.

2. A teoria da transição e os caminhos divergentes do socialismo e do capitalismo
critica radical do marxismo teórico e da teoria materialista da história, não pelo lado da metodologia, mas
simplesmente afirmando que os dados da história e da observação empírica não se encaixavam nos seus
preceitos evolutivos gerais.

Uma simples constatação de ordem prática – ou seja, o teste da realidade histórica – nos
leva à conclusão inevitável de que falácia central da concepção marxista da história tem a
ver, sobretudo, com a teoria marxiana dos modos de produção, e com suas características
teleologicamente fatalistas. Karl Marx foi certamente um dos maiores ‘inventores’ da
teoria social moderna. Não lhe cabe por suposto o mérito de ter ‘inventado’ o conceito ou
a realidade mesma da luta de classes: como ele mesmo disse, os historiadores burgueses,
antes dele, já tinham se referido a essa poderosa alavanca do progresso social, essa
verdadeira ‘parteira da História’, nada mais fazendo o filósofo alemão do que profetizar o
final da sociedade de classes em decorrência da revolução socialista e da ditadura do
proletariado.7
Não obstante, Marx inventou um dos conceitos mais fecundos empregados atualmente
pela ‘ciência’ histórica, qual seja o de ‘modo de produção’. Seu esboço n’A Ideologia
Alemã, e seu desenvolvimento ulterior tanto na Contribuição à Crítica da Economia
Política como em Das Kapital, representaram uma das grandes contribuições da
imaginação dialética ao discurso histórico contemporâneo. Não parece adequado
estabelecer aqui a lista dos demais conceitos criados ou desenvolvidos por Marx em
intenção da ‘cientificidade’ da História, da Economia ou da Filosofia Política, como
tampouco deveria ser nossa preocupação desvendar o conteúdo ontológico do conceito
de modo de produção. Cabe, no entanto, registrar que o discurso histórico elaborado nas
academias reteve esse conceito como uma espécie de paradigma interpretativo das
diversas formas historicamente possíveis de organização social da produção, mesmo
quando a ‘ciência histórica burguesa’ rejeitou a sucessão linear implícita no esquema
marxista original, ou quando a ‘ciência do materialismo histórico’, de inspiração
stalinista, atirou na lata de lixo da História o conceito de ‘modo de produção asiático’.
Durante muito tempo, intelectuais ocidentais e dirigentes do socialismo real não
hesitaram em reconhecer no modo de produção socialista uma forma superior, pelo
menos em escala histórica, de organização social da produção. Mas mesmo a acumulação
de ‘crises gerais’ no capitalismo e o movimento nacionalista e anti-colonialista dos
‘povos oprimidos’ não conseguiram abater as bases da sociedade burguesa
contemporânea, o que, de certa forma, levou a prática do socialismo real a se distanciar
cada vez mais de seus fundamentos políticos. É bem verdade que a ‘miséria da teoria’,
depois de três décadas de stalinismo, impediu o surgimento de um novo ‘revisionismo’ à
la Bernstein, ou seja, uma reforma no próprio marxismo, e o movimento ficou reduzido a
uma reestruturação no modo de funcionamento do socialismo real.
Excluindo-se a experiência iugoslava de ‘auto-gestão’, datam dos anos 1960 as primeiras
experiências de reforma no mecanismo econômico do socialismo, com a introdução de
certa autonomia na gestão das empresas e do cálculo econômico no processo de
formação de preços. Não se pode dizer que a tentativa tenha sido exatamente um sucesso,
apesar de resultados mitigados na Hungria e na Tchecoslováquia. De qualquer modo, a
simples perspectiva de um retorno a uma aplicação mesmo moderada de alguns
princípios de mercado no funcionamento do aparelho econômico socialista permitiu que
fossem legitimados o incremento do intercâmbio comercial e a expansão das relações
políticas com a área capitalista: sob a cobertura de arranjos especiais, entraram no GATT
a Polônia (1967), a Romênia (1971) e a Hungria (1973), enquanto a Tchecoslováquia

7 Cf. Paulo Roberto de Almeida, Uma previsão marxista...”, Espaço Acadêmico (ano VI, nº 65, outubro
2006, ISSN: 1519-6186; link: http://www.espacoacademico.com.br/065/65almeida.htm).

mantinha seu status de founding father (1947) dessa organização. Durante todo o período
da ‘coexistência pacífica’, encerrada a fase mais dura da Guerra Fria (até o início dos
anos 1960, aproximadamente), foi o capitalismo ocidental quem financiou o socialismo,
tanto diretamente – através de acordos comerciais e contratos de empréstimo – quanto
indiretamente, pela espionagem industrial, através da qual o socialismo minimizava sua
enorme desvantagem produtiva.
O desenvolvimento das relações econômicas Leste-Oeste permitiu ganhos substanciais às
economias do socialismo real, em termos de transferência de tecnologia (adicionalmente
àquela que não passava pelos circuitos oficiais), de acesso a mercados (ainda que
vigorassem regras de salvaguarda pela não-reciprocidade) e de fluxos financeiros
(provocando, ulteriormente, algumas das maiores dívidas per capita do mundo). A
rationale conceitual a sustentar a nova ‘coexistência’ econômica entre parceiros
desenvolvidos do Primeiro e do Segundo Mundos se situava um pouco no universo
galbraithiano da ‘convergência’ entre sociedades industriais capitalistas e socialistas. As
primeiras teriam se tornado menos ‘selvagens’, sob o impacto de políticas keynesianas de
intervenção estatal; as segundas teriam perdido muito de sua pureza doutrinária ao
reconhecerem que a queda do capitalismo não estava na ordem do dia. O utópico
discurso kruschevista sobre o ‘enterro’ do capitalismo e a vitória ‘próxima’ do socialismo
foi discretamente remetido para debaixo do tapete pelo realismo cínico e pelo
totalitarismo burocrático do brejnevismo triunfante.
A partir dessa época, as sociedades socialistas, que se beneficiaram tanto quanto
inúmeros países em desenvolvimento de vários surtos de crescimento econômico e de
expansão comercial nas décadas de retomada do crescimento da economia mundial, nada
mais fizeram senão afundar-se numa lenta esclerose econômica. Já na segunda metade
dos anos 1970, o Japão ultrapassava a produção bruta da União Soviética, para não falar
do progressivo gigantismo da então Comunidade Econômica Européia em face do
definhamento igualmente progressivo de seus vizinhos do Comecon. A estagnação era
tanto mais visível que, em termos qualitativos, o socialismo não estava habilitado a obter,
no campo das novas tecnologias, resultados similares ou equivalentes aos alcançados
durante a fase de industrialização pesada.8 Cada vez mais a crise de legitimidade política
do socialismo autoritário se viu acrescida de uma crise estrutural de sua forma de
organização econômica.
A sucessão marxista dos modos de produção foi, assim, progressivamente comprometida
pelo pobre desempenho, em todos os sentidos, do modo que deveria encarnar a etapa
superior de organização da sociedade. Essa constatação foi feita na prática pelos próprios
dirigentes do socialismo real, embora não se tenha traduzido em reformas profundas – a
despeito de diversos experimentos de introdução de mecanismos de mercado num
socialismo que se apresentava cada vez mais como disfuncional – por uma razão muito
simples: a contestação das bases fundamentais do socialismo real minaria ipso facto a
legitimidade política do grupo que mantinha o controle do poder, daí a perpetuação de
regimes esclerosados, até a implosão final. 9

8 Efetuei uma análise das tentativas de reforma no socialismo real neste ensaio: “Neo-détente &
Perestroika: Agendas para o Futuro”, Política e Estratégia (vol. 6, n. 1, jan-mar 1988, p. 67-74).
9 A fase agônica do socialismo declinante e sua implosão final foram por mim examinadas nesta sequência
de três artigos: “Retorno ao Futuro: A Ordem Internacional no Horizonte 2000”, Revista Brasileira de
Política Internacional (ano 31, n. 123-124, 1988/2, p. 63-75); “Retorno ao Futuro, Parte II”, Revista
Brasileira de Política Internacional (ano 33, n. 131-132, 1990/2, pp. 57-60); “Retorno ao Futuro, Parte III:

Acadêmicos honestos poderiam, porém, tirar suas próprias conclusões quanto à completa
inviabilidade do sistema defendido teoricamente pelos marxistas e na prática pelos
comunistas. Alguns deles, no mundo socialista, por sua própria conta e risco, declararam
que o rei estava nu – como Leszek Kolakowski, na Polônia, por exemplo – sofrendo em
consequência retaliações materiais e isolamento social enquanto dissidentes de um
regime totalitário. Poucos, entretanto, tomaram esse caminho nos países capitalistas,
posto que a liberdade de expressão e a autonomia acadêmica asseguravam total isenção
opinativa e ausência completa de sanções em regimes geralmente abertos. Pode-se dizer
que todos os regimes possuem dissidentes, mas apenas o socialismo exibe renegados.
A experiência histórica ensina que cada vez que os fatos não se encaixam na teoria, devese
reformular esta última. É o que modestamente fizeram os revisionistas da linha Deng
Xiao-ping do Partido Comunista da China, e com maior ênfase ainda os burocratas e
carreiristas empenhados em aplicar o programa de reformas econômicas chinês
comandado por ele em seu início. Os burocratas chineses abandonaram completamente
qualquer pretensão de enterrar o capitalismo e se contentaram em aprender com ele. Esse
fato foi reconhecido precocemente pelo representante oficial da China Popular em Hong
Kong, Xu Jia-tun, no quadro das negociações pelo seu retorno e dez anos antes que a
colônia britânica voltasse ao seio da madre pátria; ele o fez da seguinte forma: “Alguns
camaradas temem o capitalismo, porque na verdade sabem muito pouco sobre ele. Esses
camaradas não se dão conta de que o capitalismo mudou muito desde Karl Marx. Na
verdade, o sistema capitalista moderno é a maior invenção da civilização humana” (Le
Monde, 24.03.1988).
A estada do representante de Pequim na colônia inglesa de Hong Kong, que retornou
finalmente à China comunista em 1997, parece tê-lo convertido em um perito do
capitalismo, a tal ponto que Xu Jia-tun acreditava que seus camaradas de Partido deviam
aceitar as críticas formuladas contra o socialismo e se inspirar no capitalismo para
transformar os métodos de gestão econômica empregados em seu país. O representante
chinês tinha certamente razão quando disse que esse temor do capitalismo causou
grandes perdas econômicas para a China. Sua segunda frase é igualmente plena de
sabedoria confuciana e até mesmo um marxista radical como Mao Tsé-tung poderia ter
concordado com ela: como Stalin, Mao sabia que o capitalismo tinha mudado muito
desde dos tempos de Karl Marx, e era inerentemente superior em matéria de
produtividade. Mas isso não os impediu de implantar o socialismo a ferro e a fogo (com
alguns milhões de mortos pelo caminho). O burocrata do Partido Comunista chinês,
deslocado para a colônia capitalista de Hong Kong, enganava-se redondamente no que se
refere à terceira assertiva, pois que, se há um sistema econômico inventado pelo homem,
este é, indubitavelmente, o socialismo.
3. A China e a maior ‘invenção’ da humanidade: capitalismo ou socialismo?

O capitalismo, com efeito, não parece ter surgido de um projeto de sociedade
conscientemente definido, assim como seus princípios organizativos não emergiram
prontos e acabados de algum cérebro humano, por mais genial que este possa ter sido. O
socialismo, ao contrário, deriva dessa imensa vontade do homem de transformar, hic et
nunc, a sociedade real, modelando-a segundo seus valores morais e sua filosofia política,

Agonia e Queda do Socialismo Real”, Revista Brasileira de Política Internacional (ano 35, n. 137-138,
1992/1, p. 51-71).

realizando no presente aquilo que Reinhart Koselleck chamou de “projeção utópica do
futuro”.10
A confusão é, no entanto, inevitável quando se lida com dois paradigmas conceituais que,
em virtude de um intenso e nem sempre qualificado uso político, perderam muito de sua
capacidade explicativa. Milton Friedman também achava que o capitalismo é uma das
maiores conquistas da civilização, apesar de considerá-lo uma instituição tão ‘natural’
quanto, digamos, a cobiça humana.11

A dificuldade é tanto maior quanto a chamada ‘civilização humana’, a que se referiu o representante chinês, não costuma pautar-se em função de conceitos teóricos elaborados por ‘inventores geniais’, mas segundo princípios bem mais prosaicos ligados ao terreno da contingência histórica, onde o acaso e a necessidade, dois fatores sempre presentes no mundo natural, combinam-se para produzir resultados sempre inéditos do ponto de vista do desenvolvimento social.
Não se deduza daí que a ação humana esteja ausente dos palcos históricos. Apenas
acontece que, como diria Marx no 18 Brumário, ela só se desenvolve em circunstâncias
bem determinadas e, quando o faz, apresenta-se cingida por forças sociais bem mais
poderosas, presentes no substrato material da sociedade. Fernand Braudel dedicou parte
substantiva de sua análise sobre a formação do capitalismo europeu a desmentir a tese, de
suposta paternidade weberiana, segundo a qual determinadas seitas protestantes teriam,
de alguma forma, ‘inventado’ o capitalismo. Nada mais falacioso em termos históricos,
disse o grande historiador francês, com o que concordaria integralmente o eminente
sociólogo alemão, igualmente alertado para a ação decisiva das complexas forças
materiais que moldaram a civilização capitalista na Europa moderna. Uma das maiores
preocupações intelectuais de Weber era, contudo, a de explicar precisamente porque a
forma moderna do capitalismo tinha surgido numa sociedade de passado tão recente
como a européia, ausentando-se do cenário histórico de civilizações tão antigas como as
da Índia ou da China.
O burocrata que representava Pequim junto ao Governo de Sua Majestade em Hong
Kong, em 1988, provavelmente não tinha lido Max Weber e não poderia assim apreciar
devidamente a valiosa capacidade heurística do conceito weberiano de ‘racionalidade’.
Esse conceito é, no entanto, a chave explicativa do extraordinário desenvolvimento da
sociedade ocidental, comparativamente ao das civilizações clássicas da Índia, da China
ou do Oriente muçulmano. Assim como não se pode esperar que uma sociedade ‘invente’
espontaneamente um determinado modo de produção, por mais funcional que este seja
para suas necessidades de desenvolvimento, a aplicação do princípio de racionalidade
não deriva logicamente de um projeto humano de transformação da sociedade se ele não
está entranhado no próprio ‘código genético’ dessa sociedade. Em outros termos, a
racionalidade deve estar integrada à própria estrutura social, sem a qual ela deixa de ser
operacional para o conjunto da sociedade, produzindo efeitos apenas nos escassos setores
vinculados ao padrão modernizador externo.
Este parece ser um dos muitos desafios enfrentados por diversos países em
desenvolvimento que não dispõem de capacidade para ‘digerir’ e reproduzir os padrões
técnicos envolvidos em qualquer projeto modernizador: a absorção da tecnologia
estrangeira, ou seja da racionalidade ocidental, não parece disseminar-se facilmente para

10 Cf. Reinhart Koselleck, Kritik und Krise: Eine Studie zur Pathogenese der bürgerlichen Welt, na edição
italiana: Critica Illuminista e Crisi della Società Borghese (Bologna: Il Mulino, 1972).
11 Cf. Milton Friedman, Capitalism and Freedom (Chicago: University of Chicago Press, 1962).

o resto da sociedade, permanecendo como uma espécie de ‘ilha de prosperidade’ num
‘oceano de subdesenvolvimento’. Tal não foi o caso de vários ‘tigres asiáticos’ – como,
por exemplo, Coréia do Sul, Formosa, Hong Kong e Cingapura – que perseguiram um
custoso, mas consciente, esforço de adaptação aos novos requisitos do desenvolvimento
econômico, investindo recursos humanos e materiais na pesquisa e desenvolvimento das
chamadas novas tecnologias. O Brasil poderia ter realizado o mesmo itinerário bem
sucedido na competição industrial, mas seu empenho foi prejudicado essencialmente pela
insuficiente preparação técnica de seus trabalhadores – reflexo da má qualidade da
educação no país – e pelo caráter errático de suas políticas macroeconômicas e setoriais,
como o descontrole inflacionário.
Que este esforço possa ser mais ou menos obstaculizado pela ação corrosiva de certos
fatores conjunturais aqui e ali – dívida externa, instabilidade política, ameaças externas,
etc. – não significa que estes países, entre tantos outros, não estejam capacitados para
enfrentar o grande desafio do desenvolvimento. Fatores de natureza estrutural também
podem dificultar a marcha do progresso econômico e social em determinadas regiões,
como é o caso do baixo nível educacional das grandes massas brasileiras, das divisões
étnicas e religiosas na Índia e do grande crescimento demográfico em ambos os países.
Mas isto não impediu que a maior parte desses países já tivesse incorporado em seus
projetos nacionais a essência da ‘racionalidade ocidental’: a capacidade de inovar, de
encontrar respostas originais aos desafios do cotidiano, e a possibilidade de que esforços
individuais sejam autonomamente mobilizados para a consecução da maior parte das
tarefas ligadas à organização produtiva da sociedade.
Aí talvez se situasse a origem do entusiasmo do representante de Pequim em Hong Kong
com o desempenho da colônia, que deveria retornar à pátria de origem num momento em
que esta recém começava a se aproximar do modo de produção supostamente antecessor
ao que já vigorava no grande país asiático: as extraordinárias capacidades adaptativas do
capitalismo, ao longo de toda a sua história, encontram-se de alguma forma concentradas
no microcosmo étnico e social de Hong Kong, uma grande vitrina consumidora às portas
do grande socialismo pobre que era a China naquela época. Quando, em 1997, foi feita a
incorporação de Hong Kong ao domínio político da China continental, esta já tinha feito
uma notável evolução histórica para esse promontório ‘capitalista’ que era e sempre foi
Hong Kong. Desde então, por variadas formas (nem todas muito ortodoxas), a China
incorporou-se rapidamente ao grande sistema internacional capitalista a que já pertencia
a ex-colônia de Sua Majestade, tanto e tão bem que ela foi admitida no GATT – depois
de 14 anos de negociações – e aderiu à OMC em 2001, mesmo não tendo ainda obtido o
seu certificado legitimador de ‘economia de mercado’, algo logrado na mesma época
pela Rússia, que, com tudo isso, e a participação no G8, ainda não conseguiu ingressar na
OMC, nem na OCDE. 12
4. A Rússia e a maior ‘catástrofe’ do século 20: 1991 ou 1917?

A China, mesmo persistindo em classificar a si mesma como um ‘socialismo de
mercado’, realizou uma transição ao capitalismo mais acabada e completa, com todos os
elementos positivos e negativos que se seguem – concentração de renda, desigualdades,
etc. – do que a Rússia, supostamente considerada uma economia de mercado, mas bem
mais distante dos componentes essenciais do sistema do que o gigante asiático. A

12 Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Camaradas, agora é oficial: acabou o socialismo”, Espaço Acadêmico
(ano 2, n. 14, julho de 2002; link: http://www.espacoacademico.com.br/014/14pra.htm).

diferença nos processos de transformação se situa, provavelmente, na atitude dos
dirigentes, aparentemente comprometidos com o velho capitalismo de guerra, no caso da
China, mas extremamente relutantes em abraçar o sistema de exploração do homem pelo
homem, no caso da Rússia; o exato contrário, segundo uma velha piada, do sistema
alternativo que alegadamente vigorava na finada União Soviética.
Não é preciso remontar à caótica transição do socialismo ao capitalismo operada na
Rússia dos anos 1990 para confirmar a raríssima, provavelmente inexistente,
familiaridade dos dirigentes russos com o sistema capitalista, o que é de certo
compreensível: setenta anos de socialismo – o que representa três gerações completas –
apagam da memória dos homens quaisquer comportamentos típicos do nefando sistema
analisado por Marx e enterrado (pelo menos temporariamente) por Lênin. Seja em
virtude da obsessão leninista em relação ao ‘espírito do capitalismo’, seja por obra da
esquizofrenia stalinista contra os ‘inimigos de classe’ e os ‘agentes internos do adversário
imperialista’, a operação de eliminação dos vestígios do capitalismo na Rússia chegou ao
nível da lobotomia coletiva. Quando ocorreu sua conturbada saída do socialismo, a
Rússia acabou derivando para um tipo de capitalismo mafioso cujas origens sociais estão
na própria nomenklatura senil que comandou o socialismo declinante em sua fase
decadente. Ainda hoje, o sistema exibe traços nunca vistos nos demais países que
transitaram do socialismo ao capitalismo no decorrer dos anos 1990, provavelmente
devido à pesada herança do socialismo soviético, ‘adotado’ por menor período de tempo
no caso dos países satélites do ex-império soviético.
Curiosamente, enquanto na maior parte dos ex-países socialistas, povo e ex-dirigentes
expressam o desejo sincero de livrar-se dos fantasmas da era soviética, na Rússia parece
haver uma nostalgia do passado comunista, a ponto de seus líderes lamentarem a perda
do glorioso império construído por Stalin e seus seguidores menos brutais. Este é, pelo
menos, o sentido transmitido pelo principal ator político russo na fase pós-Ieltsin: falando
em 2005 a outros dirigentes da Rússia, por ocasião das comemorações relativas ao 60º
aniversário da vitória aliada sobre as forças nazistas, na Segunda Guerra Mundial, em
maio de 1945, o então presidente russo, Vladimir Putin, chegou a descrever o colapso da
União Soviética como representando a “maior catástrofe geopolítica do século 20”. Sem
muita modéstia, ele não limitou a amplitude do desastre à história da Rússia e da União
Soviética, apenas, mas estendeu-o a toda era contemporânea, até dar-lhe dimensões
verdadeiramente mundiais.
Pode-se concordar com o ex-presidente, agora primeiro-ministro russo, um típico
representante da antiga nomenklatura que, na finada União Soviética, trabalhava para a
KGB, o órgão de Estado que cuidava da segurança e da inteligência, com poderes muito
mais vastos – policiais, militares, repressivos, investigativos e de inteligência – do que
jamais tiveram a CIA, o M6, o SDECE e outros serviços de informação e militares do
Ocidente, agregados. Foi efetivamente uma grande catástrofe geopolítica, mas não com
esse sentido de nostalgia, de desalento ou de desespero que emerge da afirmação do
dirigente russo.
A implosão do socialismo e a dissolução ulterior do império soviético podem ter
constituído, de fato, um enorme desastre para a nomenklatura do maior poder totalitário
que já existiu na História; mas representou, na verdade, um fato extremamente auspicioso
para todos os hóspedes involuntários do Gulag, para os povos submetidos ao arbítrio
irracional de um dos sistemas mais defraudadores das liberdades cívicas e individuais,
assim como para todos os intelectuais dignos desse nome. 1991 foi catastrófico para a
86
‘nova classe’ que explorava os trabalhadores do socialismo real, mas foi um alívio para
esses mesmos trabalhadores que, segundo uma outra piada corriqueira do sistema,
fingiam trabalhar, ao passo que os primeiros fingiam que os remuneravam, segundo a
teoria do ‘valor-trabalho’.
Em termos históricos, 1991 representou, de fato, uma enorme mudança nas relações
internacionais, posto que o ano encerra uma das fases mais cruciais da era
contemporânea, a do equilíbrio pelo terror nuclear entre as superpotências da Guerra
Fria. 13

Mas julgando-o por seus resultados efetivos, em termos de redistribuição de poder
e de integração dos mercados capitalistas, pode-se concluir que se tratou de uma volta às
origens, com a retomada da globalização capitalista do início do século 20, e dos fluxos
associados de bens, serviços e capitais, com a possível diferença de uma preeminência
econômica e militar dos EUA bem superior àquela anteriormente exercida pela Grã-
Bretanha. Embora seja possível traçar paralelos quanto à extensão, os tipos de dominação
militar e econômica, bem como sobre a duração dos impérios britânico, de um lado, e
americano, de outro, a natureza do sistema de relações internacionais em cada época
respectiva – do início do século 19 até o início da Segunda Guerra Mundial, para o
sistema imperial britânico, e desde 1945 até um futuro indefinido, para o sistema
imperial americano – torna difícil uma comparação direta entre os dois sistemas de
dominação, cada um com peculiaridades únicas e irreprodutíveis.14
Muitos historiadores e economistas aludem ao fato de que o que ocorreu, na verdade, foi
apenas um mero fechamento de parênteses, depois de setenta anos de socialismo e de
oposição ideológica (e militar) entre o socialismo e o capitalismo. O socialismo teria
sido, assim, apenas um acidente histórico, um simples soluço, em escala geológica, na
longa trajetória política e econômica da humanidade, um pesadelo noturno no decorrer de
um itinerário bem mais ensolarado de bem-estar crescente, de maior disponibilidade de
bens e serviços globais e de interdependência real entre povos e países. O ano de 1991
representa, portanto, apenas uma volta ao ponto de partida, retomando com novo ímpeto
processos, fluxos, contatos e tendências que tinham ficado asfixiados durante três
gerações por força de um sistema inventado por um ideólogo e implantado por outro na
ponta de fuzis.
Em termos de tendências fortes do sistema internacional, 1917 representou uma mudança
bem mais relevante do que 1991, já que a primeira data rompeu com um quadro político
e um sistema econômico que vinham se desenvolvendo em planos similares e com
características crescentes de interdependência: democracias formais de mercado, adeptas
do padrão ouro e da projeção imperial, para o aprovisionamento em matérias primas e o
acesso a mercados. A Rússia de 1913 era uma das principais fornecedoras mundiais de
grãos, ao mesmo tempo em que acolhia investimentos diretos e empréstimos financeiros
que impulsionavam sua industrialização e a melhoria de sua infra-estrutura. 1917, sem

13 Tratei de maneira sintética dessas mudanças no sistema internacional neste ensaio, “As duas últimas
décadas do século XX: fim do socialismo e retomada da globalização”. In: José Flávio Sombra Saraiva,
Relações internacionais: dois séculos de história, vol. II: Entre a ordem bipolar e o policentrismo (1947 a
nossos dias) (Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, IBRI; Fundação Alexandre de
Gusmão, FUNAG; Coleção Relações Internacionais, 2001, vol. II, pp. 91-174), e, de maneira mais extensa,
neste livro: Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (São Paulo: Editora Paz e Terra, 2002).


14 O historiador britânico Niall Ferguson traçou alguns desses paralelos em duas obras especificamente
dedicadas a cada um deles: Empire: How Britain Made the Modern World (London: Allen Lane, 2003);
Colossus: The Price of America’s Empire (New York: Penguin Press, 2004).

considerar a guerra, rompeu todos esses vínculos e reduziu a Rússia a um experimento
único na história: a invenção de um sistema que nunca teve precedentes na economia
mundial, mesmo se o totalitarismo político não representava propriamente uma novidade
no itinerário da Rússia.
O que se seguiu a 1991 – e um pouco antes, no caso da China – foi uma reinserção na
divisão internacional do trabalho de países que tinham se afastado da economia mundial
em 1917, para a Rússia, e no pós-Segunda Guerra, para os demais países. Tratou-se, para
todos os efeitos, de uma ruptura bem mais relevante, e ‘catastrófica’ em suas
consequências políticas, econômicas e sociais, do que, no caso dos países capitalistas, a
Primeira Guerra ou a crise de 1929 e a depressão dos anos 1930, seguida pela Segunda
Guerra Mundial.
15 Estes países, encerrados os conflitos ou os períodos de crise,
retomaram seus negócios e os intercâmbios, ao passo que os países socialistas – a maior
parte não por vontade própria, mas por ‘decisão’ do Exército Vermelho – encerraram-se
numa economia de baixa produtividade e de irracionalidades crescentes, até a esclerose
final. Assim, 1991 não representou um grande acréscimo à interdependência capitalista,
em termos de produção, intercâmbio, finanças ou know-how, mas o impacto no que se
refere à mão-de-obra ou aos mercados foi relevante, sobretudo no caso da China, que
aumentava progressivamente seu papel de plataforma produtiva no grande jogo da
interdependência capitalista.

5. A transição inexistente: enterrando um mito conceitual

Ao término deste périplo analítico, pode-se perguntar se existe alguma consistência
factual ou empírica, ou até qualquer legitimidade conceitual para a metodologia histórica
marxista, consistindo em alinhar uma sucessão de modos de produção ao longo da
história, culminando com a transição do capitalismo ao socialismo, e deste ao
comunismo. O próprio conceito de modo de produção deve ser questionado, na medida
em que sua utilização nas mesmas bases metodológicas empregadas originalmente por
Marx pode representar uma camisa de força teórica que dificulta a análise de tipos
específicos, híbridos ou de transição, presentes concretamente numa formação social
determinada.
Não é preciso remontar aqui ao debate estéril que travaram os primeiros ‘marxistas’
brasileiros, na primeira metade do século 20, para saber se o ‘modo de produção’ que
vigorava no Brasil colonial era ‘feudal’ – como sustentavam os ortodoxos, ou seja, os
adeptos da ciência do materialismo dialético em sua versão dogmática – ou se ele já era
diretamente ‘capitalista’, como pretendiam outros, entre eles Caio Prado Jr. Jacob
Gorender, um dos marxistas que evoluiu do stalinismo para uma posição mais
independente, tentou superar a controvérsia concebendo um ‘modo de produção’
específico do Brasil colônia, que seria o “escravismo colonial”, um novo tipo de
formação social, mas ainda assim situado dentro da categoria dos modos de produção,
não infringindo, portanto, o cânone.16 Para os comunistas ortodoxos, o Brasil até então

15 Cf. Paulo Roberto de Almeida, “Dinâmicas da economia no século XX”. In: Francisco Carlos Teixeira
da Silva (org.). O Século Sombrio: uma história geral do século XX (Rio de Janeiro: Campus-Elsevier,
2004), p. 47-70.


16 Cf. Jacob Gorender, O escravismo colonial (São Paulo: Ática, 1978). Para uma análise de seus principais
argumentos dentro do mesmo campo analítico, isto é, de uma contribuição ao estudo de uma formação
social definida como pré-capitalista, ver Mario Maestri , “O Escravismo Colonial: a revolução Copernicana
de Jacob Gorender”, Espaço Acadêmico (ano 3, parte 1: n. 35, abril 2004; link:

era definido como um “país semicolonial e semifeudal”, posição duramente combatida
por Caio Prado Jr., que dizia que os comunistas, no Brasil, tinham de aprofundar a sua
revolução capitalista, antes de se lançarem na construção do socialismo.17
O aspecto bizarro de todo esse debate bizantino no seio da academia era que ele se
deixava agrilhoar pela camisa de força do aparato conceitual classicamente marxista, e
influenciava, além disso, as plataformas políticas e as estratégias eleitorais dos
comunistas, que não sabiam, exatamente, se deviam, ou não, fazer uma ‘aliança de
classes’ com a burguesia – descurando por completo de perguntar, a essa mesma
burguesia, se ela desejava ter como aliado político esse personagem um pouco
esquizofrênico que era o PCB. Seria risível se não fosse patético, para os acadêmicos,
obviamente. A controvérsia foi superada, na prática, pela esclerose teórica do chamado
Partidão, por sua marginalização crescente no cenário político brasileiro por ‘seleção
natural’ dos partidos mais aptos a acompanhar a evolução social e política brasileira a
partir dos anos 1970 e 80, e pelo seu desaparecimento virtual após a implosão do
socialismo real. Restaram apenas os acadêmicos marxistas, que continuam a se digladiar
em torno das ‘tarefas atuais da classe operária’, mas cujo fervor em classificar e datar os
modos de produção sucessivos presentes na formação social brasileira parece ter
amainado um pouco; a produção teórica da tribo é, de qualquer forma, medíocre.
Isso não diminui, está claro, as virtudes do conceito de modo de produção para fins de
algum trabalho analítico específico, mas seu uso acadêmico deveria ficar restrito a um
tipo de formalização histórica que emprega ‘tipos-ideais’ de organização social da
produção para fins de comparações macro-históricas. Pretender fazer, a partir daí, uma
linha sucessória dos modos de produção possíveis e factíveis de serem ‘mobilizados’ no
processo histórico real representaria, a todos os títulos, um sério reducionismo analítico e
conceitual. Mas este não é o problema principal, posto que acadêmicos sempre podem
jogar com os conceitos, em total liberdade intelectual e plena irresponsabilidade
analítica, uma vez que nunca serão cobrados pela adequação de seus argumentos ao
simples mundo exterior. Seu mundo é o universo dos conceitos, sem que estes tenham
necessariamente a obrigação de expressar alguma realidade tangível, e sua pesquisa se
conforma ao estado da arte ex-ante, de preferência aquele já consagrado em obras
clássicas que necessitam simplesmente de alguma citação reverencial.
Mais complicado, porém, consiste em acreditar que a partir de 1917 ocorreu a construção
de um ‘modo socialista de produção’ como resultado de uma luta prometéica, opondo a
antiga classe de exploradores – aristocratas e burgueses, no caso da Rússia – ao
proletariado organizado em seu partido de vanguarda. Não importa se os mesmos
marxistas acadêmicos reconhecem que essa ‘construção do socialismo’ foi prematura, e
que a Rússia não era exatamente um país capitalista, como a Alemanha, preparado para a
passagem anunciada nos textos de Marx e Lênin. Esses mesmos acadêmicos dificilmente
aceitariam a hipótese de que a ‘revolução bolchevique’ representou, apenas e tão
somente, um putsch bem sucedido, empreendido por um punhado de aventureiros que
soube deslanchar uma ação decisiva no lugar certo, no momento certo. Todo o resto foi
um desenrolar de episódios circunstanciais que jamais responderam ao chamado ‘sentido
da História’, mas simplesmente à brutalidade da ação repressiva e militar do mesmo

17 Cf. Caio Prado Jr., A Revolução Brasileira (São Paulo: Brasiliense, 1966).
partido, empenhado em se apossar do poder nas circunstâncias extremamente confusas
que eram as da Rússia em 1917-18.

Nesse sentido, nunca houve, nem nunca teria havido, a qualquer título – teórico ou
prático – transição do capitalismo ao socialismo, na Rússia ou em qualquer outro
formação social passível de ser identificada a um ‘modo’ qualquer de produção que foi
(indevidamente) classificado como socialista. Tratou-se, se tanto, de uma construção
artificial, um gigantesco ‘escravismo moderno’ que aprisionou as ‘forças produtivas’ e as
‘relações de produção’ nesses lugares, pelo tempo que durou a experiência totalitária. A
rigor, teria sido impossível, mesmo nos termos estritos do marxismo original, ter
ocorrido, hipoteticamente, uma transição desse tipo, posto que os pressupostos marxianos
sobre o funcionamento dos ‘modos de produção’ e sua ‘sucessão’ linear nunca receberam
a crítica rigorosa que esse ideólogo aplicou, de modo altamente duvidoso, ao seu objeto
preferencial de análise: o capitalismo.
Tanto a obra reflexiva de Marx, quanto a ação prática dos bolcheviques foram
essencialmente voluntaristas e insuscetíveis de serem testadas na prática. De fato, elas
nunca o foram, pelo menos de modo ‘científico’ ou consensual, senão a partir de altas
doses de violência concentrada, como ocorreu ao longo de toda a experiência soviética,
no decorrer de três gerações inteiras de construção falimentar de um edifício irrealista, a
partir de suas próprias fundações. Seus ‘engenheiros’ autoproclamados nunca receberam
uma ‘carta-patente’ – ou autorização certificada – seja da parte de ‘calculistas’
acadêmicos, seja da população objeto de seus experimentos, posto que esta foi
desprovida, ao longo de toda a experiência, da livre expressão democrática, em pleitos
concorrenciais, como sempre ocorreu no parlamentarismo capitalista. O empreendimento
como um todo era singularmente frágil, tanto em sua modelagem teórica quanto em sua
implementação efetiva, existindo sérias dúvidas, ainda quando Marx era vivo, se suas
propostas de organização social da produção, sem extração de ‘mais valia’, poderiam ser
sustentadas na prática. As críticas formuladas ao edifício teórico do marxismo por
economistas contemporâneos como Mills ou, pouco depois, por Vilfredo Pareto, nunca
foram respondidas ou sequer consideradas por Marx ou seus discípulos. Estes, numa
demonstração de autosuficiência intelectual pouco compatível com as regras de qualquer
trabalho acadêmico digno desse nome, simplesmente se fecharam em sua carapaça
conceitual e analítica, recusando um debate sério com a ‘economia política burguesa’,
num trabalho autocircular que até hoje se mantém em sua essência.
Quando às aventuras econômicas de Lênin, elas foram precocemente desacreditas, no
plano puramente técnico, por um seu contemporâneo: Ludwig Von Mises. O então jovem
economista austríaco já tinha alertado, em 1919, quanto à impossibilidade prática do
‘modo de produção socialista’, tal como concebido por Lênin e seus conselheiros
econômicos. A razão estava, simplesmente, na ausência completa dos sinalizadores
essenciais a qualquer atividade econômica racional: os preços dos insumos produzidos e
dos bens ofertados, que são normalmente formados num mercado submetido às leis da
oferta e da procura. Preços administrados por burocratas jamais conseguiriam traduzir o
princípio básico da economia, que é a lei da escassez. Von Mises antecipou, desde essa
época, que o empreendimento nunca poderia funcionar em bases sustentáveis, mas ele foi
solenemente ignorado por aqueles mesmos aos quais era dirigido seu panfleto, durante
90 toda a vigência da terrível experiência de involução econômica.Talvez fosse útil, atualmente, a releitura dos seus argumentos, para ver o quanto erraram, desde o princípio, os construtores da nova ordem econômica.
Tudo isso não significa, obviamente, que o capitalismo seja ‘eterno’, ‘invencível’, ou
insubstituível. Mas esse tipo de questão não deveria sequer ser colocado nesses termos,
de sucessão obrigatória de um ‘modo de produção’ por outro, questão quase filosófica
que apenas ideólogos sonhadores teimam em oferecer nos supermercados da História.
Como sabem todos os intelectuais sérios, os processos históricos são sempre únicos e
originais, não sendo suscetíveis de prefigurações arbitrárias. A famosa frase, de suposta
paternidade marxiana, de que a História se repete, representa nada mais do que isso, uma
frase, bem mais para o lado da farsa do que para representações trágicas. Aliás, a história
dos capitalismos realmente existentes está, como se sabe, entrecortada de rupturas e de
transformações, tão importantes e cruciais quanto as utopias desenhadas por Marx e seus
seguidores.
Ao longo de vários séculos de ‘formatação’ tentativa, o capitalismo – um sistema
absolutamente impessoal e aleatório, à maneira do ‘relojoeiro cego’ darwiniano –
assumiu diversas roupagens e modalidades, sempre dobrando-se aos imperativos maiores
da economia de mercado (que é o seu mecanismo seletivo ‘natural’). O ‘pecado’ maior
dos marxistas puramente teóricos foi o de ter, em primeiro lugar, sobrevalorizado o poder
do capitalismo no contexto das economias de mercado; e de ter, em segundo lugar,
transformado um mero sistema de organização social da produção em um poderoso
superlativo conceitual, praticamente equivalente a toda a economia de mercado, quando
ele nada mais é do que uma de suas formas especiais (como já ensinou Braudel).
Convertido, assim, em um deus ex machina providencial, o conceito marxiano foi
submetido a toda uma série de distorções teóricas, inclusive as que foram aqui abordadas,
sobre sua sucessão ‘inevitável’, sem esquecer suas muitas manipulações meramente
descritivas, sob o bisturi de discípulos menos instruídos em metodologia histórica.
É de se esperar que os atuais sucessores do marxismo estabelecido sejam mais
cuidadosos, senão no terreno da prática, pelo menos no plano da elaboração teórica,
evitando, assim, incorrer em novas falácias acadêmicas nesse terreno áspero da
hermenêutica histórica. 19 A conferir...

18 Ver o opúsculo analítico de Ludwig von Mises, O Cálculo Econômico na Comunidade Socialista (1920),
disponível em inglês no site dedicado às obras desse economista: www.vonmises.org. Para maiores
elaborações em torno do mesmo tema, ver meu ensaio “Falácias acadêmicas, 8: os mitos da utopia.
19 Não se deve confiar muito, porém: um representante distinguido da tribo, Frederic Jameson, pretende,
assim, que “um capitalismo pós-moderno exige necessariamente que se lhe contraponha um marxismo pósmoderno”,
o que, obviamente, não quer dizer rigorosamente nada. Cf. Cesar Altamira, Os Marxismos no
Novo Século ( Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008); citação extraída do Prólogo de Antonio Negri,
que parece concordar com esse inútil jogo de palavras; cf. p. 13.